terça-feira, 28 de março de 2017

SOBRE OS PEDITÓRIOS DO MUSEU NACIONAL DE ARTE ANTIGA

Concluído e bem-sucedido que foi o peditório "Vamos por o Sequeira no lugar certo", quando está já em curso um segundo, ainda que mais modesto, peditório, chegou o momento de ser politicamente incorreto.

Comecemos por questionar a natureza inédita e inovadora da iniciativa. O que é verdadeiramente inédito e inovador? Realizar um peditório ou, como alguns preferem chamar-lhe, promover uma campanha de angariação de fundos? Mobilizar os cidadãos em torno de uma causa comum? Não, creio que não há nada de inédito e menos ainda de inovador, e os exemplos não faltariam para o demonstrar.

Mas a iniciativa tem de facto duas dimensões relativamente novas, ambas no mínimo discutíveis: a primeira resulta de ser um organismo público a promovê-la e a segunda o enorme impacto que teve na comunicação social.

Em relação à primeira dimensão, obviamente uma questão política, vale a pena questionarmo-nos se uma Organização Pública, neste caso um Museu Nacional, deve promover peditórios mesmo que com a designação mais charmosa de campanhas de angariação de fundos e apesar de tentar fazer passar a mensagem de que se tratava de uma iniciativa de financiamento colaborativo [crowdfunding] que, manifestamente, não foi.

Não, em minha opinião não deve, nem sequer devia poder.

As funções essenciais do Estado e a Cultura ainda é constitucionalmente consagrada como uma delas, devem ser financiados pelos cidadãos, sim, mas não através de peditórios e sim através dos muitos impostos diretos e indiretos que disponibilizam ao Estado.

Os peditórios e as campanhas de angariação de fundos são tradicionalmente mecanismos de financiamento de causas e organizações de natureza social ou mesmo cultural, mas promovidas pelos cidadãos que se organizam em função do que entendem ser justo financiar através de recursos não públicos.

Assim, creio poder-se concluir que as organizações públicas, ao recorrer a um mecanismo de financiamento especialmente adequado para financiar organizações e projetos privados de diferentes naturezas, estão a apropriar-se ilegitimamente e a por em causa as iniciativas dos projetos que, salvo raríssimas exceções, não têm meios nem poder mediático para concorrer com o Estado na mobilização dos cidadãos potencialmente doadores.

Aliás, esta mesma ilegítima apropriação pelo Estado de mecanismos de financiamento concebidos para financiar as organizações e projetos culturais privados, se verifica com o mecenato.

Embora numa outra oportunidade pretenda abordar mais específica e aprofundadamente o tema do mecenato, cabe aqui considerar que o Estado, em vez de proporcionar verdadeiros estímulos para que as empresas financiem os agentes e projetos culturais, mais não faz que financiar-se a si próprio apropriando-se mais uma vez de um instrumento que, em minha opinião, lhe devia ser interdito.

Por outro lado, em minha opinião, a campanha "Vamos por o Sequeira no lugar certo" e ao contrário do que possa parecer e do que se afirma, contribui objetivamente para a desvalorização social do património e, sobretudo, para legitimar estratégias de desresponsabilização do Estado em relação a esta dimensão essencial do serviço público que é [deveria ser] a cultura.

O peditório reforça inequivocamente a perceção social que a preservação, valorização e divulgação do património, ou seja, a cultura, não é suficientemente importante para ser assegurada pelo Estado, podendo ficar dependente do sucesso ou insucesso de campanhas de angariação de donativos dirigidas aos cidadãos e às empresas.

O que aconteceria se a campanha não tivesse tido sucesso? A aquisição da “Adoração dos Magos” deixaria de ser estratégica para o acervo do MNAA e importante para o país? 
E, já agora, apesar de serem “pormenores” laterais:

Como e por quem foi avaliada a obra? E como foi garantida a transparência do processo? Foram passados recibos aos doadores? E como é que o “Público” geriu contabilisticamente os donativos recebidos? E como é que transferiu e a que título as verbas angariadas para o MNAA? E como é possível aplicar o Estatuto dos Benefícios Fiscais se os donativos foram feitos para uma conta bancária titulada pelo “Público” e não diretamente ao MNAA? E como se justificam as contrapartidas oferecidas às empresas doadoras se o mecenato não permite a existência de contrapartidas para os donativos? Etc., etc..

Um outro aspeto curioso do peditório tem a ver com o facto de diversas outras organizações públicas [juntas de freguesia, municípios, universidades, etc.] a ele se terem associado e, consequentemente, realizado donativos. Seria interessante saber de que rúbrica orçamental saiu cada um destes donativos e, no mínimo, como foi justificada e fundamentada a respetiva despesa.

A segunda novidade da campanha foi o extraordinário mediatismo que alcançou, em resultado da parceria com um poderoso órgão de comunicação social e, temos de reconhecer, da excelente estratégia de comunicação que o MNAA implementou e que o seu diretor tão bem protagonizou.
Assim, parece-me ser também óbvia a consideração de que o sucesso da campanha ficou a dever-se no essencial a esta exposição mediática, facto que, no entanto, não deixa de suscitar legítimas apreensões.

Se esta modalidade de financiamento das políticas públicas de cultura se generalizar, como parece decorrer do entusiasmo generalizado provocado pelo sucesso da campanha de recolha de donativos “Vamos por o Sequeira no lugar certo”, então estaremos a transferir para a comunicação social a responsabilidade de determinar o que é culturalmente importante para o país, ou não, o que tem valor patrimonial, ou não, e o que deve, ou não, ser financiado pelos cidadãos e pela “sociedade civil”.

A este propósito convém não nos esquecermos que os interesses que muitos órgãos de comunicação social representam, protegem e promovem, pouco ou nada têm a ver com os interesses da comunidade e do país, designadamente, no âmbito do desenvolvimento cultural e da valorização da cultura enquanto dimensão estruturante da cidadania.

O que pensar então de uma modalidade de financiamento da cultura que depende exclusivamente da capacidade de os agentes culturais se mediatizarem e dos apoios que têm, ou não, no mundo da comunicação social?

E serão as organizações culturais capazes de concorrer com o Estado neste processo de mobilização dos cidadãos?

Não, obviamente que não!

Seixal, 28 de março de 2017
Vítor Martelo


ALGUMAS INTERROGAÇÕES SOBRE A FISCALIDADE NO FINANCIAMENTO COLABORATIVO [CROWDFUNDING]

Depois de aprovado em agosto de 2015 o Regime Jurídico do Financiamento Colaborativo ou Crowdfunding, muitas dúvidas subsistem sobre o seu enquadramento fiscal.

Depois de algumas tentativas para obter os esclarecimentos para as interrogações que agora publico, confirmo que a resposta unânime foi “consulte um especialista em direito fiscal”.

Ora como não disponho de recursos para tal, publico então essas interrogações com o objetivo de contribuir para a resolução de um problema que pode eventualmente ter consequências no mínimo desagradáveis para doadores, beneficiários e mesmo plataformas.

As interrogações:

1. Que documento comprovativo do donativo, com valor fiscal, recebe um doador?
2. Esse eventual documento pode ser incluído como donativo [despesa] em sede de IRS para ser abatido ao rendimento coletável?
3. E quem emite o documento, o beneficiário ou as plataformas?
4. No caso de um donativo por recompensa [pré-venda] o IVA considera-se incluído? E quem emite as faturas / recibos correspondentes?
5. Quem faz o lançamento no e-fatura das faturas e recibos referentes aos donativos? As plataformas ou os beneficiários?
6. Se uma pessoa singular apresentar um projeto a financiamento e tiver sucesso, de acordo com a sugestão de uma das plataformas deve emitir um ato isolado. No ato isolado quem identifica como entidade pagadora? A plataforma? Se for a plataforma que repercussões fiscais existem? Se não for a plataforma como é que num único ato isolado se podem justificar todos os donativos?
7. Os donativos sem recompensas [serviços ou bens] estão isentos de IVA? Sempre ou em que circunstâncias?
8. Se uma organização [empresa ou associação] apresentar um projeto a financiamento e tiver sucesso que documento[s] contabilístico[s] emite e a quem? E o que deve colocar no documento?
9. E essa receita, no caso das empresas, está sujeita a IVA? Ou seja, as empresas podem receber donativos isentos de IVA tal como as associações?
10. E como tratar esta receita no que diz respeito ao IRC?
11. Quando uma plataforma emite uma fatura / recibo referente à sua comissão, fá-lo a quem? Ao beneficiário ou aos doadores?
12. Se for ao doador como é que este justifica um fluxo financeiro aparentemente não existente [sem registo bancário ou outro suporte justificativo da despesa]?

O esclarecimento destas dúvidas é o repto que lanço a quem possa e queira responder designadamente ao legislador e à AT!

Seixal, 28 de março de 2017


Vítor Martelo